Sunday, 3 March 2013
Pedofilia na Igreja, fantasma também no Brasil
RIO e ROMA — O agora Papa emérito Bento XVI deixou oficialmente o posto mais alto da Igreja Católica com muitas feridas abertas. Talvez a principal tenha sido o acúmulo de denúncias vinculando padres, e até cardeais, a casos de abuso sexual de menores. Foram várias outras crises, das políticas às financeiras, nos quase oito anos do pontificado que acaba de chegar ao fim. Mas a combinação entre pedofilia e batina choca mais. No Brasil, maior nação católica do mundo, casos recentes, como o do padre de Niterói flagrado em vídeo com uma adolescente, acendem o alerta que recairá sobre os braços do novo Papa e de atuais e futuros bispos.
As denúncias de violações dos direitos de crianças e adolescentes em templos, de qualquer religião, aumentaram significativamente de 2011 a 2012. Enquanto isso, arquidioceses brasileiras até falam abertamente sobre o tema, mas ainda caminham a passos lentos para tratar de um assunto que, de tão espinhoso, inclui até correlações em documentos oficiais entre homossexualidade e abuso sexual.
Os números fazem parte de um levantamento feito com exclusividade para O GLOBO pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, a partir de denúncias recebidas pelo Disque 100, serviço gratuito do governo federal aberto 24 horas por dia. Em 2011, 147 pessoas discaram para o número 100 e denunciaram violação de direitos de crianças e adolescentes em instituições de qualquer tipo de religião. Destas, 102 relataram violência sexual contra menores (abuso ou exploração). Houve um aumento significativo: em 2012, os registros de violência sexual subiram 89%, chegando a 193 denúncias, de um total de 340 registros que incluem ainda violência física ou psicológica e negligência (como casos de crianças abandonadas que a igreja recebe, sem ter culpa). A base de dados não discrimina a denominação religiosa, apenas separa os casos genericamente como de "igreja". Todos são enviados para as autoridades locais competentes. No Rio, o Disque-Denúncia também recebe ligações sobre abusos sexuais. Somente em igrejas católicas do estado, foram dez queixas nos últimos cinco anos.
Num cenário nacional e internacional de preocupação cada vez maior com sacerdotes que ignoram a lei, tanto a formal quanto a religiosa, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) tenta se movimentar para dar respostas. O cardeal Geraldo Majella, ex-presidente da CNBB, que está em Roma para a despedida de Bento XVI e para o conclave no qual será eleito o sucessor, disse que a orientação da Igreja hoje é levar as denúncias à Justiça comum.
- O Papa Bento XVI tornou muito mais duro o tratamento na Igreja sobre os casos de pedofilia que envolvam o clero. O Papa já vinha advertindo os bispos para não apenas suspenderem os clérigos que sejam apontados como pedófilos, mas que também sejam entregues ao braço secular (Justiça civil), que sejam julgados e recebem a condenação justa.
Em maio de 2010, a presidência da CNBB publicou um documento sobre abusos sexuais. O primeiro item das “orientações concretas” - depois de pedidos de perdão para vítimas, reconhecimento do “mal irreparável” de casos assim e promessa de investigação eficaz - pede atenção na admissão ao seminário e às ordens sacras de um grupo específico: pessoas com “tendências homossexuais”. Em outro item, constitui uma comissão para elaborar diretrizes sobre como será a política oficial de ação da Igreja como reação a denúncias dessa natureza.
Mais de dois anos e meio depois, as diretrizes de ação local ainda não foram distribuídas às dioceses. Se um padre é flagrado ou denunciado, a orientação inicial é que cada diocese resolva o assunto localmente. De acordo com o monsenhor Antonio Luiz, assessor da Comissão Para Doutrina da Fé na CNBB, há um procedimento duplo. Primeiro há uma orientação para que a denúncia seja feita ao Ministério Público. Depois a Igreja, internamente, abre uma investigação prévia para verificar o fundamento da acusação. O sacerdote é suspenso e a denúncia é remetida ao Vaticano, desde 2000, por determinação de Bento XVI, quando ele estava na Congregação para Doutrina da Fé.
- Ninguém instala câmera para fiscalizar a vida de um padre. Um sacerdote formado está fazendo um bom trabalho na paróquia, se pressupõe a boa fé. Assim como a gente pressupõe a boa fé do professor na escolinha de futebol, que há também denúncias nesse ambiente, de um vizinho, um tio, um primo. Hoje a Igreja é absolutamente consciente da gravidade disso. O Papa Bento XVI deixou claro: nestes casos, a tolerância é zero - diz o monsenhor Antonio Luiz, que está em Roma para a despedida do Papa Bento XVI.
Os órgãos que recebem as denúncias estimam que o número de histórias reais deva ser bem maior do que as denunciadas. Não há, na CNBB, uma comissão específica que mapeie os abusos, tampouco um setor que analise caso a caso. O frei Evaldo Xavier Gomes, da Igreja do Carmo de Belo Horizonte, participou da formulação das diretrizes. Ele afirma que o texto está pronto, mas ainda falta a aprovação final do Vaticano. Segundo ele, a CNBB assume uma postura “extremamente rígida” diante da gravidade do problema. Ele também diz que não há relação alguma oficial entre homossexualidade e abusos, e que não sabe se será ou não criado um órgão específico para acompanhar esse tipo de crime.
- O texto diz que as autoridades no Brasil e a Igreja devem colaborar na elucidação desses casos. Se comprovada a culpa, também deve-se colaborar com a punição. É uma atitude de total intolerância da CNBB com relação a qualquer prática, para punir, sanar e evitar novos casos. A Igreja em hipótese alguma vai acobertar. Será uma política nacional de combate a esse tipo de prática, uma resposta - ressalta. - Pelo que conheço do texto, não se faz essa vinculação de forma alguma (entre homossexualidade e abuso sexual). Não vejo essa associação, jamais.
Também em Roma, o cardeal Raymundo Damasceno, presidente da CNBB e arcebispo de Aparecida do Norte, pede que os casos sejam relatados:
- É importante que seja uma denúncia séria, na qual as pessoas assumam a responsabilidade. Muitas vezes as denúncias são anônimas e você se pergunta: é verdade? Não é verdade? Nenhum advogado vai instaurar um processo com denúncias anônimas.
As manchetes de jornal, no Brasil e no mundo, continuam sendo ocupadas por novos casos de abuso sexual dentro da Igreja e isso faz com que o assunto tenha de ser tratado com urgência, segundo estudiosos. Professor de Faculdade de Teologia da PUC-RS, Frei Luiz Carlos Susin sugere a criação de um órgão específico:
- Isso deveria ser uma prioridade decisiva porque, evidentemente, não somos melhores que o resto do mundo. A Igreja foi sacudida por um despertar, ainda não havia uma consciência amadurecida a respeito da vítima. Temos mecanismos, a questão é a vontade política para concretizar. Deve ser uma prioridade. Acho que é importante (um órgão) para conhecer a realidade. Não é bom ficar numa situação nebulosa, tanto para tratar quanto para consertar eventuais acusações generalizantes.
Para Dom Geraldo Majella, é preciso pressa nas investigações.
- O caso tem que ser tratado imediatamente... não é para esperar tantos meses, tantos anos. O processo tem que ser rápido para a dispensa (do sacerdote) e também para ser levado a um tribunal civil - disse o cardeal.
No mundo, os casos têm atingido os mais altos cargos da Igreja. Arcebispo de Nova York, o cardeal Timothy Dolan foi interrogado durante três horas, no último dia 20, por advogados de 500 supostas vítimas de abuso sexual que teriam sido cometidos por padres de Milwaukee, na época em que ele era líder daquela arquidiocese. Ele é suspeito de ter acobertado 575 casos de abuso, segundo denúncia do jornal “New York Times”.
Outros cardeais, como Roger Mahony (EUA), Norberto Rivera Carrera (México) e Sean Brady (Irlanda) foram denunciados ou confessaram ter cometido o mesmo crime. Os casos se somam ao afastamento do agora ex-cardeal escocês Keith O’Brien, decidido pelo próprio Papa, devido a acusações de que o religioso teria cometido “atos impróprios”.
Essa reportagem foi publicada no vespertino para tablet “O Globo a Mais”